Exercitar-se com Resfriado: O Fim de um Dogma Perigoso para Atletas?

A regra é conhecida por qualquer atleta: ao primeiro sinal de um resfriado, a orientação é parar. A ameaça de miocardite e morte súbita paira como um fantasma sobre treinos e competições durante uma infecção respiratória. Mas e se essa crença, arraigada há décadas, estiver baseada em evidências frágeis? Um artigo de opinião publicado no Journal of Sport and Health Science desafia esse dogma e propõe uma revisão urgente. Novos dados sugerem que os riscos foram superestimados e que a decisão de competir ou não deve ser mais inteligente e individualizada. Prepare-se para repensar tudo o que você sabia sobre exercício e doença.

Lino Matias

11/17/20255 min read

O Resfriado Comum: O Inimigo Número Um do Atleta

O atleta de elite vive em um estado de equilíbrio delicado. Treinos intensos, viagens constantes e a pressão por resultados criam um ambiente perfeito para o vírus mais comum do mundo: o resfriado.

  • Sintomas e Frequência: Caracterizado por dor de garganta, coriza, espirros e tosse, o resfriado raramente causa febre alta e dura de 5 a 7 dias.

  • Impacto no Treino: Estudos prospectivos mostram que um atleta sofre, em média, 1,7 episódios de infecção respiratória aguda (IRA) por ano. Até 18% dos atletas de elite são considerados altamente suscetíveis, com 4 ou mais infecções em 18 meses, atrapalhando significativamente a periodização do treinamento.

  • Os Vilões Principais: Rinovírus e coronavírus sazonais são os responsáveis por 60% a 80% dos casos de resfriado em atletas. E aqui está um ponto crucial: esses vírus não são conhecidos por serem cardiotrópicos (infectar o coração) ou cardiotóxicos, ao contrário de outros como enterovírus e adenovírus.

O Estudo com Camundongos que Criou um Dogma

A base para a recomendação de repouso absoluto vem de experimentos com animais realizados há mais de 50 anos.

  • O Experimento Chave: Camundongos infectados com o coxsackievírus B3 (CVB3) foram forçados a nadar. Enquanto apenas 5,5% dos camundongos em repouso morreram de miocardiopatia, o grupo que se exercitou teve uma taxa de mortalidade assustadora de 50%.

  • A Generalização do Risco: Esses estudos criaram a "regra" de que exercício extenuante durante qualquer infecção viral poderia desencadear miocardite. O repouso tornou-se a recomendação padrão.

  • Uma Visão Mais Nuanceada: Uma meta-análise recente mostra que exercícios moderados antes ou após a infecção podem, na verdade, reduzir a morbidade. O problema real parece ser o exercício até a fadiga. É importante notar que a miocardiopatia induzida por exercício durante infecções por enterovírus nunca foi relatada em humanos.

Miocardite em Atletas: Separando o Fato da Ficção

A miocardite é o risco de saúde mais temido para um atleta doente. Mas qual é a real incidência e gravidade?

  • Incidência na População Geral: Em homens de 20 a 40 anos, a taxa é de 5 a 10 casos por 100.000, sendo geralmente uma condição autolimitada.

  • Os Verdadeiros Vírus Culpados: Biópsias cardíacas frequentemente identificam parvovírus B19 e herpes vírus humano-6 como os vírus mais comuns no tecido cardíaco. Importante: nenhum deles causa infecções respiratórias.

  • O Caso da COVID-19: A pandemia trouxe um foco enorme na miocardite associada ao SARS-CoV-2. Em uma análise de 6.138 atletas com COVID-19, a incidência de miocardite clinicamente diagnosticada foi de apenas 1,2% (menor que os 4,2% da população geral). A grande maioria dos casos foi leve, com recuperação total após 3 a 6 meses de repouso.

Morte Súbita Cardíaca (MSC): O Risco é Real, mas Raro

O medo supremo é que uma simples gripe leve a uma morte súbita durante o exercício. Os dados, no entanto, acalmam os ânimos.

  • Incidência de MSC em Atletas: A taxa de MSC em atletas com menos de 35 anos varia de 0,24 a 2,28 por 100.000 pessoas-ano.

  • Miocardite como Causa: A miocardite é responsável por apenas 6% a 10% de todas as MSC em atletas. Um estudo sistemático recente calculou a incidência de MSC por miocardite em apenas 0,047 por 100.000 pessoas-ano. Isso se traduz em 1 morte a cada 2,3 milhões de pessoas-ano.

  • Dados Contundentes do Reino Unido:

    • Um estudo com 756 casos de MSC em adolescentes identificou 128 atletas. A miocardite foi a causa em 30 casos (4%), mas em nenhum atleta.

    • Dos 30 casos de morte por miocardite, 29 ocorreram em repouso e apenas 1 durante o exercício.

    • Outro estudo maciço com 7.702 casos de MSC concluiu que apenas 1,1% foram atribuídos à miocardite.

Resumo dos Fatos sobre Morte Súbita:

  • O risco absoluto é extremamente baixo.

  • A miocardite é uma causa incomum de MSC em atletas.

  • A maioria das mortes por miocardite ocorre em repouso, não durante o exercício.

O Impacto da Infecção no Desempenho Atlético

Se o risco à saúde é baixo, a pergunta se torna: vale a pena competir doente? O desempenho é afetado?

  • Falta de Dados Concretos: Surpreendentemente, não há dados robustos sobre como diferentes vírus respiratórios afetam o desempenho atlético de elite durante a fase sintomática aguda.

  • O Caso do Rinovírus: Um estudo com infecção experimental por rinovírus mostrou apenas mudanças mínimas na capacidade máxima de exercício.

  • O Caso da COVID-19: O SARS-CoV-2, por ser um vírus multissistêmico, pode reduzir a capacidade aeróbica e a função cardiorrespiratória, afetando o desempenho.

  • A Evidência Anecdótica dos Campeões: A prática comum contradiz a teoria:

    • Jogadores da Liga Nacional de Hóquei frequentemente competem com resfriados.

    • Os esquiadores noruegueses Johannes e Tarjei Bø terminaram em 1º e 2º lugar em uma competição da Copa do Mundo estando positivos para SARS-CoV-2.

    • Jacob Ingebritsen venceu o campeonato mundial dos 5000m sofrendo de um resfriado.

Retorno ao Esporte: Por uma Abordagem Mais Inteligente

As diretrizes atuais são baseadas em opiniões de especialistas, mas o artigo defende uma mudança de paradigma.

  • A "Regra do Pescoço" (Neck-Check) é Insuficiente: A regra que permite exercício se os sintomas estão "acima do pescoço" (coriza, dor de garganta) é considerada não científica. Infecções na garganta por adenovírus ou enterovírus, por exemplo, podem ser perigosas.

  • A Diagnóstico Etiológico é a Chave: A decisão de retornar deve ser baseada no diagnóstico do vírus causador. Saber se é um rinovírus inofensivo ou um adenovírus potencialmente cardiotrópico muda tudo.

    • Pausa Obrigatória: Infecções por SARS-CoV-2, influenza, adenovírus e enterovírus são motivo para interromper treinos e competições.

    • Liberação Possível: Atletas com resfriado comum (provavelmente por rinovírus ou coronavírus sazonal) podem treinar e competir, desde que...

  • O Processo de Decisão Personalizado: A decisão final deve ser um consenso entre:

    • O atleta.

    • A equipe médica (que deve incluir um especialista em doenças infecciosas).

    • A ausência de sintomas de alerta cardíaco: dor no peito, síncope, falta de ar severa e palpitações.

Conclusão: Fim do "Repouso Absoluto", Início da Medicina de Precisão

O artigo não defende que atletas ignorem seus corpos e competem em qualquer estado. Pelo contrário, ele clama por uma abordagem mais sofisticada, baseada em evidências e menos em medo. O dogma de que exercício durante um resfriado é uma rota direta para a miocardite e morte súbita não se sustenta frente aos dados epidemiológicos modernos.

A mensagem final é de cautela inteligente. Em vez de um "não" universal, devemos adotar um "depende" informado. Com o uso de testes virais rápidos e uma avaliação médica personalizada, podemos permitir que atletas compitam com segurança durante um resfriado comum, protegendo-os ao mesmo tempo das infecções que realmente representam uma ameaça. É hora de trocar o dogma pela ciência.

REFERÊNCIA: Ruuskanen O, Valtonen M, Waris M, Luoto R, Heinonen OJ. Sport and exercise during viral acute respiratory illness-Time to revisit. J Sport Health Sci. 2024 Sep;13(5):663-665. doi: 10.1016/j.jshs.2023.12.002. Epub 2023 Dec 9. PMID: 38072364; PMCID: PMC11282332.